Diário de Notícias, 17/08/07
António Vitorino
jurista
A luta pelo poder e o seu exercício transformam o comportamento dos agentes políticos. Essa alteração dos padrões de comportamento faz-se sentir de forma muito especial nos processos de transição política, designadamente quando do acesso à independência ou de uma mudança de regime político.
Os períodos de transição deixam, por via de regra, uma marca muito forte na matriz do sistema político em gestação. Mas reconheçamos que o específico ambiente de uma transição não produz mecanicamente resultados que se possam ter por predeterminados.
Recordemos o caso das transições ibéricas nos anos 70.
A queda da ditadura em Portugal verificou-se num ambiente revolucionário que quase colocou o país à beira de uma guerra civil. A estabilização democrática passou por quase década e meia de ajustamento do texto constitucional, seguindo um processo de progressivas aproximações.
Por contraste, a transição espanhola foi levada a cabo de forma contratualizada (a chamada "rotura pactuada"), sob a égide da instituição monárquica, que havia sido reinstaurada pelo próprio franquismo, e acabou por se traduzir num texto constitucional que acabaria por permanecer imutável até hoje.
Ora, o que é curioso é que a conturbada transição portuguesa, assente num texto constitucional colocado ele próprio no centro do combate político, viria a gerar um regime político onde os padrões do combate político são bem menos crispados e acintosos do que os que vigoram no combate político em Espanha, onde a transição foi muito mais controlada e mais consensual, desde os seus primórdios, quanto à definição das próprias regras do jogo.
Em larga medida estas diferenças resultam do papel que as lideranças desempenharam nos respectivos processos de transição e das preocupações que os nortearam. Pode-se dizer que em Portugal imperou uma preocupação de edificação de um sistema político que privilegiasse a concertação e a partilha do poder, sem partidos hegemónicos ou mesmo dominantes.
Enquanto que em Espanha a lógica dominante foi a de fomentar o contraponto entre alternativas de poder ideologicamente orientadas, matizadas apenas pela realidade das Comunidades Autónomas de base regional.
Esta reflexão vem a propósito dos acontecimentos recentes em Timor-Leste.
Os portugueses que, na sua esmagadora maioria, apoiaram ao longo dos anos a autodeterminação e independência de Timor-Leste habituaram-se, no seu imaginário da Resistência contra a ocupação indonésia, tanto na luta armada como na acção político-diplomática, a colocar do mesmo lado da barricada todos aqueles que hoje se confrontam em Timor-Leste na praça pública numa luta sem quartel pelo poder.
A instabilidade assim gerada causa perplexidade e projecta sérias dúvidas sobre a viabilidade, a prazo, da estabilização do sistema democrático em Timor-Leste. Desde logo porque se afigura que as eleições presidenciais e legislativas, convocadas precisamente para ultrapassar a crise política e institucional que se manifestou tão dramaticamente no início do ano passado, afinal não produziram a mudança de ambiente político que se desejava e esperava.
Cabe, pois, às lideranças timorenses, tanto às políticas como às da sociedade civil, compreenderem e assumirem, neste momento grave da vida de Timor-Leste, o papel que lhes cabe desempenhar na definição da matriz futura do sistema político do seu país.
Sem esse contributo de bom senso e de moderação a crise política persistirá e a transição para uma independência plena e democrática poderá continuar incompleta. Por quanto tempo mais?
17 août 2007
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